Para explicar como este marco da história do país do futebol ocorreu, temos que voltar no tempo, mais precisamente para a década de 1920.
O futebol no Brasil era amador e por conta disso as condições não eram boas o suficiente para os clubes. Então desde o começo dessa década, tiveram início os debates sobre a profissionalização do futebol, que não era bem vista.
A década de 20 movimentou os debates, que só saíram do papel no início da década seguinte.
Os clubes cariocas deram o primeiro passo: Fluminense, Bangu e América criaram um estatuto para uma liga profissional e divulgaram. O resultado: Botafogo, Flamengo e São Cristóvão não aceitaram, enquanto o Vasco decidiu se juntar aos 3 primeiros.
Assim foi criada a Liga Carioca de Football – LCF, primeira federação profissional do país. O estado de São Paulo não ficou atrás, mas diferente do RJ não foi necessário a criação de uma nova liga. A Associação Paulista de Esportes Atléticos – APEA, refez seu estatuto para não perder poder com os jogadores e clubes filiados que em suma maioria eram favoráveis à profissionalização.
Mesmo com a força das duas federações, a CBD — Confederação Brasileira de Desportos, precursora da CBF, não aceitava a profissionalização do futebol, por isso a LCF e a APEA se uniram e criaram uma confederação rival com a CBD, esta era a Federação Brasileira de Football – FBF.
A FBF foi criada em 26 de Agosto de 1933. (Curiosamente, no mesmo dia de aniversário do Palestra Itália, que anos depois, junto a Corinthians e Vasco, virariam as costas para a FBF, mas isso é história pra outro dia).
No meio de todo o embrulho, foi criada então a primeira competição profissional do Brasil, o Torneio Rio-SP, antes mesmo da fundação legal e oficial da FBF. O torneio começou em 07/05/1933 e terminou em 10/12/1933.
Por mais que a FBF não estivesse criada ainda, a intenção e força dela já existiam, tanto é que mesmo sendo fundada depois, ela é oficialmente a organizadora do torneio.
A ideia da FBF era criar um torneio que se igualasse ao Campeonato Brasileiro de Seleções Estaduais, que naquela época, era o principal torneio de nível nacional.
A tentativa foi falha, pois apenas a federação carioca e paulista eram filiadas à confederação.
E assim foi criada a primeira competição profissional do Brasil.
Regulamento
O campeonato foi disputado num modelo de pontos corridos com jogos de ida e volta e teriam 12 equipes.
Os participantes da primeira edição foram 5 times do RJ e 7 de SP.
Representando o RJ:
América RJ
Bangu
Bonsucesso
Fluminense
Vasco
Representando SP:
Corinthians
Palestra Itália (Palmeiras)
Portuguesa
Santos
São Bento
São Paulo
Ypiranga
OBS: Com certeza vocês vão se perguntar porque o Flamengo e Botafogo não participaram desse Torneio Rio-SP, e a resposta está no texto. Veja, apenas Vasco e Fluminense apoiaram a criação da LCF que, por conseguinte, resultou na criação da FBF que foi a principal organizadora do campeonato. Flamengo e Botafogo ficaram na Associação Metropolitana de Esportes Athleticos – AMEA, que era filiada à CBD. Contudo, isso durou pouco, devido ao grande sucesso do Torneio Rio-SP e da LCF, o Flamengo se juntou a eles no ano seguinte, enquanto o Botafogo permaneceu na AMEA.
Recordes do torneio
O campeonato foi iniciado em 07 de maio e finalizado em 10 de dezembro.
Teve 548 gols em 132 jogos.
O melhor ataque do campeonato foi o São Paulo de Arthur Friedenreich e Waldemar de Brito (artilheiro da competição) com 75 gols marcados em 22 partidas.
A melhor defesa foi do Palestra Itália de Junqueira e Romeu Pellicciari com 25 gols sofridos.
O time com mais vitórias foi o Palestra Itália – 17.
O time com menos derrotas foi o Palestra Itália – 3.
A maior invencibilidade do torneio foi do Palestra Itália – 12 jogos.
Mais goleadas aplicadas – São Paulo 11 goleadas.
Maior goleada da edição – Palestra Itália 8 x 0 Corinthians.
Maior goleada do mandante –
Palestra Itália 8 x 0 Corinthians.
Maior goleada do visitante – Corinthians 0 x 6 Santos /// Santos 0 x 6 Portuguesa.
Partida com mais gols – São Paulo 7 x 4 América RJ.
Como não se tem informações sobre o horário que ocorreram as partidas, então considerarei as 5 partidas que ocorreram no dia 07/05/1933 como as primeiras partidas de futebol profissional do Brasil, em campeonatos oficiais:
América RJ 2 x 6 Bangu – Campos Salles
Corinthians 1 x 5 Palestra Itália – Parque São Jorge
Fluminense 3 x 1 Vasco – Laranjeiras
Santos 6 x 2 Ypiranga – Vila Belmiro
Portuguesa 3 x 3 São Bento – Ponte Grande
Como foi a disputa
Os jogos não ocorreram em rodadas fixas de 6 jogos em que todas as equipes jogavam. Muito pelo contrário, foi uma bagunça colossal. Os únicos momentos em que todos os clubes após uma data de jogos ficaram com a mesma quantidade de jogos foram na rodada 11 e 22.
Então, faremos uma abordagem diferente devido a como o torneio ocorreu.
Quando todos os clubes chegaram em 5 partidas, essa era a classificação dos 4 primeiros:
- Bangu – 8 Pontos
- Palestra Itália – 8 Pontos
- São Paulo – 7 Pontos
- Portuguesa – 7 Pontos
Ao final da rodada 11 os quatro primeiros colocados eram:
- São Paulo – 17 Pontos
- Palestra Itália – 17 Pontos
- Portuguesa – 16 Pontos
- Bangu – 15 Pontos
Ao final da rodada 16 os quatro primeiros eram:
- Palestra Itália – 26 Pontos
- São Paulo – 25 Pontos
- Bangu – 21 Pontos
- Portuguesa – 21 Pontos
Ao final do campeonato, esta era a tabela completa:
- Palestra Itália – 36 Pontos
- São Paulo – 34 Pontos
- Portuguesa – 30 Pontos
- Bangu – 29 Pontos
- Vasco – 23 Pontos
- Corinthians – 22 Pontos
- Fluminense – 20 Pontos
- América RJ – 18 Pontos
- Santos – 17 Pontos
- Bonsucesso – 16 Pontos
- São Bento – 13 Pontos
- Ypiranga – 5 Pontos
O Palestra Itália chegou na ultima rodada contra o Fluminense precisando de um empate ou de uma derrota do São Paulo para se sagrar campeão. A partida do tricolor paulista acabou com uma vitória do São Paulo e devido a isso o time de imigrantes italianos entrou em campo precisando empatar o jogo no Parque Antártica.
O jogo do título
- 10/12/1933 – Domingo
- Palestra Itália 2×1 Fluminense
- Local: Parque Antártica (São Paulo/SP);
- Juiz: Loris Cordovil (SP);
- Gols: Gabardo 15′, Dula 19′ e Bermudes 39′ do 2º;
- PALESTRA ITÁLIA: Nascimento, Carnera e Junqueira; Tunga, Dula e Tuffy; Avelino, Gabardo, Pelicciari, Lara e Imparato III. Técnico: Humberto Cabelli.
- FLUMINENSE: Armandinho, Ernesto e Nariz; Marcial, Brant e Ivan; Álvaro, Vicentino, Russo, Bermudes e Salvyo. Técnico: Artur de Azevedo Filho.
Análise da disputa
O campeonato se iniciou com o Santos e Bangu lideres do campeonato, mas a alegria do Alvinegro praiano duraria muito pouco e a má fase tomaria conta do Peixe, deixando-o no meio de tabela o campeonato inteiro, finalizando o campeonato em 9º lugar.
Por outro lado o Bangu começou o campeonato extremamente forte, na abordagem por rodada, foi líder por 4 rodadas sozinho e 1 junto ao Santos, já na abordagem de datas manteve-se líder por 8 datas, infelizmente para o Alvirrubro seu gás deu uma diminuída no final do primeiro turno e início do segundo, nesse período de 5 jogos, perdeu 4 – 1×0 São Paulo, 6×0 Palestra; 3×0 Vasco e 2×1 São Bento, sua única vitória nesse período foi sobre o Corinthians por 2 a 1.
Esses 8 pontos perdidos fizeram falta no final e podemos dizer que foram decisivos para o Bangu não ser campeão, pois, até o início dessa má fase, o time do Castor era líder do campeonato. E o detalhe que deixa tudo pior para os torcedores Banguenses é que após essa sequência, o time teve ganhou 6 jogos seguidos.
A campanha do Alvirrubro foi extremamente boa e terminou a competição na quarta colocação.
Outro time de destaque na competição foi a Portuguesa à moda Mineirense. Explico: existe um ditado popular que diz “Mineiro come quieto”, a Lusa jogou este torneio inspirado por este dito.
A tradicional equipe paulista de imigrantes portugueses foi uma das quatro equipes que se mantiveram, praticamente, do início ao fim no top 4 da tabela. Mas diferente do Bangu que deu sustos nos principais competidores São Paulo e Palestra Itália, a Portuguesa parecia um voyer, ficava observando a bagunça de longe, como se gostasse, apesar de às vezes dar as caras.
A lusa fez um campeonato consistente, mas sempre ficou a impressão de que eles não eram verdadeiros candidatos. Com o passar das rodadas e a queda de rendimento do Alvirrubro, os Lusitanos viram seu clube assumir o terceiro lugar e não largar mais.
O São Paulo, ou São Paulo da Floresta como era conhecido, foi o principal rival do campeão no torneio mesmo que tenha começado o campeonato com o pé esquerdo – uma derrota justamente pro time que viria ser campeão o Palestra Itália.
O Tricolor paulista não se abateu com a primeira derrota e voltou com força ficando invicto por 4 rodadas sendo 3 vitórias, até ser derrotado pelo Bonsucesso. Depois emplacou uma sequência de 4 vitórias até ser derrotado pelo Vasco. Seguiu o campeonato e fez uma sequência de 6 jogos invicto com 5 vitórias, até ser derrotado novamente pelo Palestra Itália. Depois dessa derrota as chances do São Paulo ser campeão haviam diminuído bastante, faltavam 3 jogos para ambos e a diferença era de 4 pontos e eles eram os únicos que podiam ser campeões.
O que aconteceu em seguida foi o Tricolor vencer suas 3 partidas restantes, sua última partida aconteceu no dia 3/12/33 contra o Fluminense, que foi derrotado por 5×2. Nessa mesma data, jogavam Bangu x Palestra, último jogo do Alvirrubro no torneio e penúltimo do Alviverde, a partida terminou em 4×3 para o time do Castor.
Com a derrota do clube de imigrantes italianos, os são paulinos puderam acreditar que podiam ser campeões novamente, pois naquele momento eles eram líderes do campeonato faltando apenas um jogo: Palestra Itália x Fluminense, no Parque Antártica, em São Paulo.
Antes disso, é bom lembrar que o São Paulo disputou o campeonato com o Palestra Itália cabeça com cabeça. Na abordagem de rodada por rodada os Tricolores lideraram o campeonato por 3 rodadas. Entretanto, pela abordagem de data a data, que na minha opinião é mais fiel ao que aconteceu no campeonato, o São Paulo liderou 10 das 34 rodadas. Agora, voltemos ao jogo decisivo.
O jogo aconteceu dia 10/12/33, e para a frustração dos Tricolores, o Palestra Itália venceu por 2×1 o Fluminense e se consagrou campeão do primeiro campeonato profissional de futebol da história deste país.
Abaixo deixo as imagens que mostram os líderes a cada rodada/data.
O campeão
O Palestra Itália foi fundado em 26/08/1914 por moradores do bairro do Brás, muitos deles eram funcionários das Indústrias Matarazzo. A iniciativa surgiu depois de uma excursão dos clubes Torino e Pro Vercelli, ambos da Itália. Este último era referência futebolística da época, pois era tricampeão italiano consecutivo e o segundo maior campeão no geral, com 5 títulos.
O sucesso da instituição ecoou pelo Brasil, outros clubes foram criados em homenagem ao Palestra Itália de São Paulo, ou por terem gostado do nome. Os mais notáveis foram em 1921: o Palestra Itália de Minas Gerais, o qual mais tarde se tornaria o Cruzeiro Esporte Clube; e o Palestra Itália do Paraná, o qual depois de uma fusão se tornou o Colorado Esporte Clube que anos depois em outra fusão daria origem ao Paraná Clube.
O restante da década de 20 do Palestra foi marcado por um bicampeonato paulista e a saída dos principais jogadores: Bianco se aposentou, Heitor (maior artilheiro da história do Palmeiras) foi vendido ao Americano, Ministrinho voltou para a Juventus da Itália e por fim o Serafini foi vendido a Lazio da Itália.
Apesar das grandes perdas, o clube contratou Romeu Pellicciari (jogador que viria marcar história no Palestra e no Fluminense), e Junqueira (grande ídolo da história alviverde com mais de 300 jogos disputados).
Para a disputa do campeonato paulista de 33 e do Torneio Rio-SP de 33, o atual campeão paulista de 32 tinha em seu elenco:
Goleiros: Nascimento, Joel e Zeca.
Zagueiros: Junqueira, Carnera, Loschiavo, Magalhães, Narciso e Pintanella.
Meias: Adolfo, Cambon, David, Del Poppolo, Delbianco, Dula, Garcia, Goliardo, Tuffy, Tunga e Zico.
Atacantes: Armandinho, Avelino, Carazo, Fogueira, Gabardo, Lara, Luís Imparato, Paulo, Pupo, Romeu Pellicciari, Sandro e Vincenti.
A campanha do campeão
Corinthians 1 x 5 Palestra Itália
São Paulo 2 x 3 Palestra Itália
Santos 1 x 3 Palestra Itália
Vasco 1 x 2 Palestra Itália
Portuguesa 3 x 1 Palestra Itália
Palestra Itália 3 x 3 Bonsucesso
São Bento 0 x 2 Palestra Itália
América RJ 1 x 0 Palestra Itália
Ypiranga 1 x 2 Palestra Itália
Fluminense 1 x 4 Palestra Itália
Palestra Itália 6 x 0 Bangu
FIM DO PRIMEIRO TURNO
Palestra Itália 4 x 3 Santos
Palestra Itália 1 x 1 Portuguesa
Palestra Itália 2 x 1 Vasco
Palestra Itália 5 x 0 Ypiranga
Palestra Itália 3 x 0 São Bento
Bonsucesso 1 x 3 Palestra Itália
Palestra Itália 8 x 0 Corinthians
Palestra Itália 1 x 0 São Paulo
Palestra Itália 4 x 0 América RJ
Bangu 4 x 3 Palestra Itália
Palestra Itália 2 x 1 Fluminense
O Palestra Itália jogou 9 de 11 jogos fora de casa no primeiro turno e mesmo assim conseguiu terminar o turno em segundo lugar empatado em pontos com o São Paulo que jogou 6 em casa.
(Era normal isso acontecer. O Ypiranga jogou 4 de 11 em casa, América jogou 4 de 11 em casa e etc.)
JOGOS IMPORTANTES:
São Paulo 2 x 3 Palestra Itália
Palestra Itália 1 x 0 São Paulo
O São Paulo foi vice-campeão com 34 pontos e o Palestra foi campeão com 36. Ou seja, o Palestra vencer o Tricolor paulista, nos dois confrontos diretos, foi o principal responsável pelo título Alviverde, visto que, bastava um empate em qualquer uma dessas partidas pro São Paulo ser campeão.
Palestra 6 x 0 Bangu, este jogo foi importante por ter sido a reinauguração do Parque Antártica que estava em reformas.
Bangu 4 x 3 Palestra Itália foi importante porque colocou muito peso nos ombros do time alviverde, pois eles chegaram na última rodada precisando conquistar pontos senão seu rival seria campeão.
Palestra Itália 2 x 1 Fluminense, o jogo do título.
Esse é desnecessário explicar a importância.
Finalização
O Torneio Rio-SP foi considerado um sucesso e a FBF queria dar continuidade ao projeto. Entretanto, não foi possível, pois a partir de 1934 aconteceram diversas movimentações políticas e administrativas tanto na LCF quanto na APEA.
Tudo isso aconteceu porque a CBD aliciou o Palestra Itália, Corinthians e Vasco a saírem de suas respectivas ligas e se aliarem novamente.
Os 3 clubes seguiram a CBD e a força da FBF ficou restrita a LCF com Fluminense e Flamengo e a APEA com a Portuguesa.
A CBD conseguiu aliciar os clubes com promessas de amistosos internacionais e além disso, ela era a legítima representante da seleção brasileira perante a FIFA.
Depois dessas promessas, Palestra e Corinthians se juntaram e criaram a Liga Bandeirante de Futebol para organizar um campeonato paulista paralelo à APEA. Tal instituição foi o embrião da FPF atual. O Vasco, por sua vez, se uniu ao Botafogo na antiga AMEA, federação em que o Glorioso e o Rubro Negro estavam associado, entretanto, o Flamengo em 34 já havia deixado o Botafogo sozinho e ido participar da LCF devido ao seu sucesso.
Conclusão
O futebol brasileiro é permeado de política desde os confins da sua história.
A história do Primeiro Campeonato Profissional Brasileiro, na verdade, é o recheio.
O recheio de uma grande e longa luta por poder das federações.
E, há, quem ache que a história não se repete.