Do escândalo do Calciopoli na Itália à Máfia do Apito no Brasil, casos de manipulação de resultados e corrupção envolvendo arbitragem são mais frequentes no futebol do que gostaríamos e, sempre que estouram, ganham as manchetes ao redor do mundo, abalando a credibilidade do esporte.
Mas, talvez o caso mais grave, e sujo, envolvendo árbitros, cartolas e manipulação de resultados não seja tão conhecido assim dos brasileiros. Por isso, hoje a PFQL resolveu falar sobre o Apito Dourado, que aconteceu em Portugal e veio à tona 20 anos atrás.
2004: o início
O ano de 2004 foi muito atípico no mundo do futebol por ser conhecido como o “Ano das Zebras”. Mas, o que foi atípico para uns, pode ter sido motivo de festa para outros – e é aqui que se encaixa o povo lusitano.
Naquele ano, Portugal foi o centro das atenções do futebol europeu: sediou a Eurocopa, ficando com o vice-campeonato, e viu o Porto, seu grande clube, conquistar a Champions League, revelando ao mundo o técnico José Mourinho. Mas, muito antes dessas glórias, um escândalo já havia abalado as estruturas do futebol português.
Pinto da Costa: o protagonista
Em janeiro de 2004, a Polícia Judiciária de Portugal (PJ) grampeou o telefone de Jorge Nuno Pinto da Costa, com o empresário António Araújo.
Durante a conversa, António menciona que o árbitro Jacinto Paixão, escalado para a partida entre Porto e Estrela Amadora pela Liga Portuguesa, estaria interessado em uma “fruta” para a noite após o jogo. No código usado pelos envolvidos, “fruta” significava prostitutas, sugerindo que o presidente do Porto estaria subornando árbitros por meio de favores sexuais. O jogo terminou com vitória do Porto por 2 a 0 sobre o Estrela Amadora.
O caso Deco
Outro ocorrido, que ficou bem famoso durante as investigações, foi uma polêmica envolvendo Deco, à época, craque e camisa 10 do Porto e grande promessa ao lado de Cristiano Ronaldo para a Euro 2004.
Durante o confronto com o Boavista (que ainda vai aparecer nessa thread), Deco – que sempre teve fama de ser calmo dentro de campo – jogou uma de suas chuteiras em direção ao árbitro, após ser expulso por dar um passe descalço. Por mais que o arremesso não tenha sido certeiro, o erro do jogador luso-brasileiro foi grave e se esperava uma punição grave pela atitude.
No entanto, como dito anteriormente, Deco era uma das maiores esperanças nacionais para o primeiro título da Seleção Portuguesa e, além disso, o Barcelona observava o craque desde o início da temporada e prometia desembolsar um valor grande pelo jogador.
Pinto da Costa, sabendo de tudo isso e não querendo perder o dinheiro da venda por uma possível desistência do Barcelona após Deco ficar meses parado, encomendou um falso furo de reportagem, no qual Deco afirmaria estar desanimado e ameaçando não jogar por Portugal caso sua punição fosse muito grande.
A notícia foi um assombro não só para a população portuguesa, que às portas da Euro não queria perder seu craque, mas também para a própria Federação de Portugal. Com isso, Pinto da Costa alinhou o discurso para a imprensa com Deco.
A jogada deu certo e o jogador pegou apenas um jogo de gancho, em função do cartão vermelho.
Apito Dourado
No dia 20 de Abril de 2004, é iniciada a operação Apito Dourado, que contou com a detenção de 16 pessoas entre dirigentes e árbitros, de todos os escalões do futebol português. Entre os detidos estavam o presidente da Liga Portuguesa de Futebol Profissional (LPFP) e da Câmara Municipal da Cidade de Gondomar – próxima ao Porto, Valentim Loureiro, o dirigente do Conselho de Arbitragem da LPFP, Pinto de Sousa e o presidente do Gondomar Sport Club, José Luís Oliveira.
O caso tomou a mídia local e as investigações foram se intensificando no decorrer do ano. Em dezembro de 2004, Pinto da Costa, António Araújo, Jacinto Paixão e outros três árbitros foram detidos, com o então presidente portista se apresentando livremente após ser procurado em casa pela polícia – Pinto da Costa foi liberado dias depois após pagar multa de 200 mil euros.
Em 2005, a Operação Apito Dourado teve seu primeiro fim. Como resultado: um processo de mais de 17 mil páginas, entregue à PJ de Gondomar.
Eu, Carolina
Já em 2006, Carolina Salgado, ex-esposa de Pinto da Costa, publica seu livro autobiográfico, chamado “Eu, Carolina: a história verdadeira”. Na obra, a autora fez diversas revelações sobre os mais diversos temas, entre eles: corrupção desportiva, evasão fiscal, violação do segredo de justiça, agressões, perjúrio e fuga à justiça, que ressuscitaram o Apito Dourado.
O livro, com supostas acusações reais e formais contra Pinto da Costa, foi considerado infundado pela Justiça Portuguesa, mas teve apelo midiático suficiente para que todas as manchetes e tablóides de Portugal voltassem a falar do Apito Dourado.
Em 2007, Carolina Salgado foi ouvida pela primeira vez na Operação e confirmou todas as acusações feitas em seu livro e, no ano seguinte, Pinto da Costa foi suspenso de atividades ligadas ao futebol por dois anos. O Porto também foi punido em uma multa de 150 mil euros (por tentativa de suborno) e perdeu 6 pontos no campeonato nacional. Porém, a decisão foi recorrida e nem Porto, nem Pinto sofreram punições.
O Boavista Futebol Clube (aquele que apareceu anteriormente) também foi punido e condenado ao descenso para a segunda divisão por suborno e coação de árbitros, e ao pagamento de uma multa de 180 mil euros. O União Desportiva de Leiria também foi condenado e perdeu três pontos no campeonato, além de o seu presidente ser suspenso do futebol.
Absolvição de Pinto da Costa
Pinto da Costa foi absolvido da acusação de corrupção em relação ao confronto entre FC Porto e Estrela da Amadora de 2003/04 no dia 23 de Setembro de 2014, mais de 10 anos depois do ocorrido. Junto dele, Jacinto Paixão e os outros árbitros condenados também foram absolvidos. O mesmo ocorreu na justiça comum, que considerou as escutas incriminatórias ilegais e, portanto, não poderiam ser consideradas no caso.
Pinto da Costa ainda continuou na presidência do Porto por muito tempo após o caso explodir na mídia. Em 2022, o cartola completou 40 anos à frente dos Dragões e terminou seu reinado dentro do clube em 2024, quando foi derrotado nas urnas por André Villas-Boas. Pelo seu tempo de direção, Pinto da Costa é considerado o dirigente mais vitorioso da história – tendo acumulado 69 conquistas no comando do Porto.
Para quem quiser maiores informações, a obra de Carolina Salgado foi adaptada aos cinemas, em um filme chamado “Corrupção”, dirigido por José Botelho e muitos áudios e escutas telefônicas do Apito Dourado foram divulgados no YouTube em 2010.