Haviam se passado apenas 330 anos desde a morte de Cristo quando o grande imperador romano Constantino I nomeou a cidade de Bizâncio como capital do Império Romano. Mais de um século depois, o vasto império se dividiu entre Ocidente e Oriente, e a antiga Bizâncio, agora chamada de Constantinopla, tornou-se a capital do Império Romano do Oriente, também conhecido como Império Bizantino. Quando Mehmed II tomou a cidade em 1453, ela passou a ser a capital do Império Otomano e ganhou um novo e último nome: Istambul.
Além de ter sido sede de três impérios diferentes, Istambul também possui uma outra característica muito peculiar: a cidade é dividida entre os continentes europeu e asiático pelo Estreito de Bósforo. No entanto, as suas disputas e dicotomias não se restringem à política ou geografia. Istambul também abriga uma das maiores rivalidades do futebol mundial, o clássico entre Fenerbahçe e Galatasaray, conhecido como o Dérbi Intercontinental.
No lado europeu do estreito, o Galatasaray é conhecido por ser o clube da “elite” de Istambul. Os leões são os maiores campeões da Liga e da Copa Turca e têm a maior torcida da Turquia. No lado asiático, o Fenerbahçe, clube do povo, foi o primeiro da dupla ser campeão turco em 1959, além de ostentar a honra de ter as suas cores defendidas pelo brasileiro Alex de Souza, homenageado em uma estátua em frente ao Estádio Şükrü Saraçoğlu.
O primeiro duelo ocorreu em 17 de janeiro de 1909, quando o Galatasaray venceu o seu rival mesmo em território asiático pelo placar de 2×0. O domínio dos leões foi amplo nos primeiro anos de rivalidade, chegando a 8 vitórias consecutivas, maior série do dérbi até hoje. Em uma dessas vitórias, um dos maiores triunfos do Gala no clássico. Mesmo com apenas 7 jogadores em campo por que vários atletas não conseguiram atravessar o Estreito de Bósforo, os visitantes aplicaram um 7×0, que até hoje é a maior goleada do confronto.
Em 1934, a rivalidade começou a nascer. Em um simples amistoso, os jogadores pareciam absolutamente obcecados pela vitória, como se fosse uma verdadeira final de campeonato. Foram muitas faltas duras e discussões até que se chegou a uma verdadeira batalha campestre com troca de chutes e socos que resultaram na suspensão da partida sem um vencedor.
Depois do domínio grená e amarelo, foi a vez do Fenerbache dar o tom no dérbi. Nos anos 40, os canários aplicaram a maior série invicta da história do clássico, foram 18 jogos sem perder pro maior rival. Em 1959, o Dérbi Intercontinental decidiu a primeira final do campeonato turco, com vitória dos asiáticos após vencerem por 4×0 o jogo decisivo, resultando em um agregado de 4×1 e título para os canários.
As décadas seguintes vieram com um tom mais equilibrado nos resultados, com vitórias marcantes e invencibilidades variando de um lado para o outro. Essa disputa cada vez mais acirrada resultou na ascensão dessa rivalidade que já marcava o futebol turco. Em 1996, na grande final da Copa da Turquia, o Galatasaray bateu o seu rival na prorrogação em pleno território asiático. Quando o juiz apitou o final do jogo, o técnico vencedor Graeme Souness invadiu o gramado e fincou uma bandeira do Gala no meio do campo, imitando o gesto feito por um dos protagonistas da tomada de Constantinopla pelo Império Otomano em 1453. Obviamente, a torcida mandante não gostou nada disso e arremessou até mesmo fogos de artifício nos vencedores enquanto eles comemoravam o título, além de tentarem invadir o campo, o que não aconteceu graças a ação da polícia.
Outro confronto que ficou marcado na história foi a grande goleada de 6×0 aplicada pelo Fener em cima de seu rival europeu pela Liga Turca em 2002, com o brasileiro Washington, o coração valente, marcando um dos gols. No entanto, o brasileiro e ídolo dos canários, Alex não teve tanta sorte quando encarou o Gala na final da Copa da Turquia e perdeu por 5×1 em 2005.
As décadas de 2000 e 2010 no entanto ficaram mais marcadas pelas torcidas do Dérbi Intercontinental. Pelo lado bom, todo confronto é garantia de lindas festas em qualquer estádio que seja. Mosaicos, sinalizadores e um barulho incessante definem a atmosfera incomparável que só um Fenerbahce x Galatasaray pode oferecer. Por outro lado, episódios de violência não são novidade também. Em 2010, a violência chegou até mesmo aos jogos da base, quando uma dérbi no sub-17 resultou em 14 pessoas hospitalizadas pela confusão. Isso ainda foi pouco comparado ao que aconteceu em 2013, quando a torcida do clube asiático proferiu cantos racistas em um dérbi. Mais tarde no mesmo dia, um torcedor de 19 anos do Fener foi espancado até a morte por rivais, o que resultou na proibição de clássicos com as duas torcidas no estádio.
Com suas ruas que testemunharam o surgimento de impérios e a queda de muros, Istambul é uma cidade que respira a história como poucas. O futebol ajuda a contar esse enredo repleto de disputas e tensões através de uma rivalidade que remete aos tempos de guerras e conquistas em Constantinopla. Em um Fenerbahce x Galatasaray, o campo de jogo vira campo de guerra e a vitória é a única opção para aqueles que o disputam. E que sempre seja dessa forma. Vida longa ao dérbi intercontinental.
Ótimo texto. Trabalhando conjuntamente aspectos históricos do país e da história dos clubes e os duelos. Parabéns.