A dificuldade da camisa 10 no Brasil

Falta um elo. Um anarquista. Um maestro, um coordenador. Alguém que dê de ombros aos botões nas pranchetas e obedeça à pelota. É algo que o futebol brasileiro carece há muito, muito tempo. E já passou da hora de reaver. Um camisa 10 de fato.

Noite de Copa
Por Noite de Copa 7 Minutos de Leitura

Endrick, Vitor Roque, Vinícius Júnior, Gabriel Martinelli, Rodrygo, Pedro 06, Luís Guilherme, Marcos Leonardo, ngelo, Lázaro. O futuro parece brilhante para o ataque da seleção brasileira. Parece, também, para o meio: Lucas Paquetá, Andrey Santos, André, Danilo, João Gomes…

Falta, porém, um elo. Um anarquista. Um maestro, um coordenador. Alguém que dê de ombros aos botões nas pranchetas e obedeça à pelota. É algo que o futebol brasileiro carece há muito, muito tempo. E já passou da hora de reaver. Um camisa 10 de fato.

A dificuldade da camisa 10 no Brasil

Definição de conceitos: posição, função e característica

Antes de mais nada, é preciso delinear conceitos para que a análise seja possível. Existem três formas básicas de se elencar e classificar um jogador: posição, função e característica.

A posição é a mais simplória, simples de se identificar. É o local no campo onde o atleta se sente melhor, aparece, participa do jogo.

A função é o que ele traz para a equipe. Seja defensiva, ofensiva, ambos, de suporte com a bola, abertura de espaços, por aí vai. O que, exatamente, esse atleta entrega dentro do sistema da equipe

Por último, a característica é o traço individual. Existem diversas formas de se jogar futebol no mundo: com um toque, com dois, três, cinco, dez. Recebendo a bola no pé ou no espaço vazio. De frente ou de costas pro gol, de lado ou encarando o defensor, usando a parte interna, externa, ou a sola do pé na condução e no domínio.

Essa introdução pode parecer óbvia, eu sei, mas é fundamental para delinear, por exemplo, porque o Brasil não tem um meia-armador de primeiro nível neste século XXI.

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Os papéis no meio-ataque

O meia-armador, o ponta de lança, o CA, o beirada, o meia atacante, o segundo atacante e o falso 9 Aqui, nós dissecamos e separamos; de um lado a posição moderna de 10, de meia-armador, e do outro a camisa 10 que ilustra o craque, a principal referência técnica de uma equipe. Resumindo e exemplificando por POSIÇÃO:

Meia-armador

O jogador que tratamos neste texto. É um organizador do jogo da equipe, que tem por função controlar ritmo, espaço, tempo e qualidade técnica de um time. É o cara, claro, que acha passes na linha defensiva adversária, mas que não se resume apenas a isso. Roda o campo, está perto da bola e potencializando o jogo dos companheiros. Seu local de partida no campo, portanto, é sempre onde a bola está. Em outras palavras, o cérebro. Exemplos consolidados no futebol brasileiro dos dias atuais são Renato Augusto, Paulo Henrique Ganso ou James Rodríguez.

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Meia-atacante

A expressão surgiu no futebol brasileiro entre os anos 90 e os anos 2000, para resumir uma geração de ouro do futebol nacional. No 4-2-2-2 que se popularizou no país, são os jogadores que possuem qualidade para receber a bola na intermediária adversária, participar da criação de jogadas ofensivas encontrando passes na última linha, e também possuem arranque e drible para atacarem a área ou finalizarem de fora. Na evolução mundial para o 4-2-3-1, formam qualquer uma das 3 posições da linha de meio-ataque. Exemplos famosos da função foram Kaká, Ronaldinho Gaúcho, Rivaldo, Marcelinho e Alex, enquanto hoje os maiores expoentes no Brasileirão são De Arrascaeta, Raphael Veiga e Jhon Arias.

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Ponta-de-lança

Essa terminologia se perdeu no futebol brasileiro a partir dos anos 1990, mas é a síntese dos principais jogadores da história da América do Sul. São, em proposta, parecidos com os meia-atacantes, mas são mais agressivos ao atacar a área, mesmo partindo do meio. Pelé, Maradona e Zico são as três melhores figuras para explicar a posição de quem arrancava com dribles fulminantes, armava, pisava na área e fazia muitos, muitos gols. Hoje, no Brasil, quem funciona melhor nesta posição é o camisa 10 do Inter, Alan Patrick.

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Ponta

Uma das poucas posições presentes desde os primórdios do futebol, é altamente prestigiada, uma vez que é referência de drible, show, espetáculo e afins. Seu maior expoente histórico foi Garrincha, mas hoje se exige produção de números elevados, o que transforma pontas em jogadores que buscam finalizações muito mais complicadas por dentro do que a sequência da jogada pelos lados.

Os três jogadores mais talentosos a aparecer no futebol mundial no século, Messi, Cristiano Ronaldo e Neymar surgiram como pontas e explicam muito dos requisitos exigidos na versão moderna da função.

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Centroavante

Também presente desde os primórdios, é o homem mais avançado, principal responsável por colocar a bola no gol. A vertente inglesa vitoriana, que via no jogo a representação dos valores católicos de valorização à força física e a masculinidade transformaria o jogador num truculento trombador. Mas há também quem seja adepto do 9 de técnica leve, refinada. No futebol atual, Erling Haaland se aproxima mais do primeiro exemplo. Seu predecessor, Sérgio Agüero, pode ser lido como mais próximo do segundo.

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Falso 9

Papel imortalizado na história do jogo por Hidekguti e ressuscitado por Lionel Messi. Nele, o jogador escalado como centroavante ocupa a posição de referência para atrair a defesa adversária. Sai, então, da área, participa da armação e produz espaços para seus companheiros infiltrarem em direção ao gol. Além de Messi, o outro grande exemplo da função é Roberto Firmino, hoje no Al Ahli.

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As referências brasileiras na armação

Na Copa de 1982, Telê Santana abriu mão do 4-3-3 usado no futebol brasileiro, para comportar a quantidade enorme de craques no meio-campo que a seleção nacional possuía. Toninho Cerezo, Falcão, Sócrates e Zico. Dois meia-armadores (Cerezo e Falcão) e dois ponta-de-lanças (Sócrates e Zico) formaram um quadrado mágico que simbolizou o que há de melhor na armação do futebol brasileiro. Antes deles, quando o WM chegava e se consolidava no país com Flávio Costa, criando assim as posições de meia brasileiros, Zizinho era o grande expoente. Depois, um dos jogadores mais técnicos e elegantes em todos os tempos, Didi, levou a canarinho a seu primeiro título mundial na Suécia. Gérson, o canhotinha de ouro, veio na sequência para organizar e orquestrar um festival de drible, arrancada e qualidade com Pelé, Tostão, Jairzinho e Rivellino no México. O próprio Rivellino se tornaria a referência de organização da seleção quatro anos depois, na Alemanha. Contudo, a derrota para a Itália, como não poderia deixar de ser no folclórico romantismo trágico brasileiro, deixou cicatrizes. No time dos craques, quem marca? Um volante de contenção era exigido pela opinião pública. De repente, as funções do meia-armador foram lentamente se dividindo, entre um segundo volante, responsável por auxiliar atrás e cobrir terreno, e os meia-atacantes, tão armadores quanto atacantes.

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A falta de meia armadores no Brasil e as tentativas de adaptação no século 21

Os meia-atacantes do século 21 no Brasil chegaram com o pé na porta pelo talento geracional. O Brasil não precisou de um organizador de jogo em 2002 – Kleberson, aliás, foi a grande surpresa na decisão com o poder de infiltração. De carregar a bola ao invés de pisá-la. Rivaldo foi artilheiro. Ronaldinho fez filas à rodo. Em 2006, nem Kaká, nem Ronaldinho, tampouco Juninho foram páreo para Zidane – esse sim um organizador nato.

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A geração se foi, e a renovação veio. Ganso era o símbolo da volta de um organizador ao primeiro nível, mas as lesões o pararam. Os candidatos, um a um, deixaram de ser opção – Diego Ribas, Philippe Coutinho, Oscar. Meia-atacantes, mais atacantes do que meias. Mais condução que passe. Mais drible que visão, mais correria que respiro. A produção havia se voltado para os pontas – como Neymar. Vieram Willian, Hulk, Bernard, Felipe Anderson, Lucas Moura, Taison… A produção de pontas segue à todo vapor. Os organizadores, porém…

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Jogadores com o status de meia-armadores que o futebol brasileiro produz nos últimos dez anos dificilmente conseguem algo além do chamado “flop”. Pode ser que sim, seja apenas uma safra de baixa qualidade técnica, mas o problema parece mais cultural, de falta de tempo, paciência e entendimento sobre este papel – que quase nunca entrega uma planilha de números com emojis fáceis de serem lidos. Talvez o melhor exemplo venha do São Paulo: Rodrigo Nestor. Ainda que seja um meia-atacante, o jovem camisa 11 tem muitas das características fundamentais para um armador. Para um organizador de jogo. E por tal razão quase acabou crucificado até acertar a rede de Rossi no Morumbi que via, pela primeira vez, a Copa do Brasil. Neymar, surgido como ponta, é hoje a grande esperança de torcida e mídia especializada para armar a seleção brasileira – já foi assim, aliás, em 2022. Neymar não é e nunca foi armador. Sua característica não é essa. Segundo atacante, meia-atacante, que seja, mas Neymar jamais deixou de ser atacante. Sua fome por gol não permite, em nenhuma hipótese, que ele seja o organizador de uma equipe.

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Os organizadores do século 21: intensidade e maestria

Considerado por muitos o último enganche argentino clássico, Riquelme disse certa vez não saber onde jogaria no futebol dos dias atuais. Normal para quem cresceu numa cultura onde o organizador tinha liberdade para andar por toda a cancha e que vê hoje sistemas enrijecidos por todo lado. Mas a função não desapareceu. Muito pelo contrário.

Busquets, Modric, Griezmann e De Bruyne. Exemplos diferentes, posições diferentes, características semelhantes e funções iguais: organizar e qualificar suas equipes. Griezmann, na França, é um meia-armador que vez ou outra se arrisca como ponta-de-lança. Modric é um todocampista – o famoso box-to-box de hoje, que faz Real Madrid e Croácia rodarem. Busquets, um primeiro volante que distribui, arma e organiza. De Bruyne um meia-atacante que participa, como pouquíssimos, do penúltimo e do último passe. Todos com intensidade para participar do jogo sem a bola. Mas todos livres para fazerem seus papéis de cuidar da bola. Com as disposições táticas de meio campo das equipes dos dias atuais exigindo a cobertura de praticamente todo o campo, os meia-armadores precisaram se reinventar em outros espaços do campo. Seu papel, de organização, ritmo e qualificação técnica da posse de suas equipes segue, porém, mais fundamental do que nunca.

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O futebol brasileiro tem prospectos espetaculares. Talentos que podem ser geracionais em uma safra que empolga como há muito não se via. Mas eu ainda sinto falta de um maestro, dentro de campo, para ditar o ritmo dessa equipe.

Nós somos as 5 dimensões do futebol.
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